Aprendendo a esquecer

Eliminar um fato da memória não significa apagá-lo, mas aprendê-lo de outra forma, propôs no início do século passado o fisiologista russo Ivan Pavlov, o mesmo que condicionou cães a salivar sempre que ouviam o toque de uma sineta. Quase cem anos mais tarde experimentos com ratos feitos por pesquisadores do Brasil e da Argentina indicam que Pavlov aparentemente estava certo. Ao menos no que se refere ao esquecimento de eventos desagradáveis ou aterrorizantes, como deparar na esquina com um assaltante portando uma arma.

Os neurocientistas Janine Rossato, Lia Bevilaqua e Martín Cammarota, do Laboratório de Neuroquímica e Neurofisiologia da Memória do Centro de Memória do Instituto do Cérebro da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), submeteram roedores a uma série de testes em que tinham de aprender uma informação e depois esquecê-la. No trabalho em que descrevem os experimentos, os pesquisadores demonstraram que o processo de extinção de uma memória é muito semelhante ao de aquisição e que ambos podem ser reforçados ou enfraquecidos no momento de sua utilização.

“Esse resultado é um marco conceitual”, afirma Cammarota, diretor do grupo e coordenador do estudo do qual participaram Iván Izquierdo, da PUCRS, e Jorge Medina, da Universidade de Buenos Aires, na Argentina. Até então a visão mais aceita pela neurociência era a de que a extinção e a reconsolidação da memória eram processos antagônicos e excludentes: uma lembrança só poderia ser apagada ou fortalecida. Os dados apresentados na PNAS tornam sólida uma ideia um pouco diferente: eliminar uma memória não significa apagá-la, mas, como havia sugerido Pavlov, criar uma nova memória que coexiste com a inicial e se sobrepõe a ela.

Parece estranho imaginar o esquecimento como uma forma diferente de recordar algo. Mas é isso que o grupo de Cammarota vem observando em estudos feitos nos últimos cinco anos. Uma descrição dos testes deve ajudar a entender o trabalho. Num experimento tradicional de aprendizagem, um rato é colocado sobre uma pequena plataforma elevada no interior de uma gaiola. O roedor desce da plataforma e inicia um passeio pelo novo ambiente tão logo se vê sozinho. Mas, para avaliar a capacidade de memorização, os pesquisadores fazem o rato aprender algo novo: quando desce da plataforma, leva um leve choque nas patas que indica que explorar a casa desconhecida pode ser perigoso. Numa próxima vez, o roedor leva em média sete vezes mais tempo para se arriscar fora da plataforma, numa indicação de que se recorda do que ocorreu anteriormente.

Os pesquisadores repetem algumas vezes o experimento eliminando o choque quando pretendem desfazer a memória do evento que causa aversão, processo denominado extinção. Nos testes de extinção, a memória é resgatada sem um dos componentes que a originou – no caso dos roedores, eles deixam de levar choque numa situação semelhante àquela em que receberam a descarga elétrica antes. Em geral depois de cinco sessões sem receber a descarga elétrica, os animais se esquecem do choque. Foi justamente na extinção da memória que a equipe de Cammarota conseguiu interferir. No experimento descrito na PNAS, Janine e Lia submeteram os ratos a cinco sessões de extinção – uma por dia, a partir de 24 horas depois de os animais aprenderem que poderiam levar um choque ao descer da plataforma. Instantes depois da última sessão de extinção, elas aplicaram diretamente no hipocampo, região do cérebro associada à aquisição da memória, a anisomicina, um inibidor de síntese protéica.

O bloqueio da síntese proteica, necessária à formação e à consolidação da memória, prejudicou o esquecimento (extinção da memória) do evento desagradável. Colocados na plataforma, os ratos se comportavam do mesmo modo que faziam depois da sessão de choque e evitavam descer ao chão da gaiola, diferentemente daqueles que receberam o tratamento com veículo, utilizado apenas para dissolver a droga utilizada, portanto, inócuo. “Esse resultado indica que a extinção pode tanto ser fortalecida como desaparecer”, explica Cammarota.

Essa constatação altera a compreensão de como ocorre a extinção de uma memória e pode levar, no futuro, ao desenvolvimento de tratamentos medicamentosos e de psicoterapias que auxiliem no tratamento de problemas como o transtorno de estresse pós-traumático, distúrbio psiquiátrico marcado por lembranças intensas e até mesmo paralisantes de uma situação que colocou a vida em risco, a exemplo de um sequestro-relâmpago ou um assalto a mão armada. “Algumas formas de terapia cognitivo-comportamental fazem a pessoa reviver a situação desagradável ou de medo para tentar eliminar a memória do evento traumático, mas esse efeito dura algumas semanas”, conta Cammarota. “Não se levava em consideração que o processo de extinção pode ser modificado e até fortalecido pela utilização da memória”, diz.

Caso os resultados da equipe de Cammarota sejam replicados por outros grupos, talvez seja possível desenvolver compostos químicos ou estratégias psicoterápicas que reforcem o processo de extinção, em vez de alterar a memória inicial por meio da lembrança do evento traumático. Seria algo como passar pela esquina do assalto repetidas vezes e verificar que nem sempre haverá um meliante à espreita. “Se conseguirmos melhorar o processo de extinção”, diz Cammarota, “talvez possamos eliminar a memória desagradável inicial”.

Fonte: Revista Pesquisa Fapesp

“O aspecto mais notável da memória é o esquecimento” (James McGaugh)

@larissaomfaria

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